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“AGORA CHEGOU A VEZ VOU CANTAR: MULHER DA MANGUEIRA, MULHER BRASILEIRA EM PRIMIMEIRO LUGAR” |
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Carnavalesco: Cid CarvalhoTudo era festa no meu tempo de menino. Nascido e criado em Mangueira, o morro e seus bairros eram o meu quintal, mas também a minha casa, o meu mundo, o meu reduto para brincar, para aprender as duras lições da vida e, para sonhar… Habitada por gente simples e tão pobre/ que só tem o sol que a todos cobre… Cantarolava eu, que nem conhecia Cartola, contudo por intuição percebia a resposta ao como podes Mangueira cantar? De verso em verso, a intuição virava convicção: eu digo e afirmo que a felicidade e os sonhos aqui moram, e aí estava a chave de tudo – a felicidade e os sonhos. Por aqui, até nossos barracos são castelos/ em nossa imaginação… Sonhou feliz, Nelson Cavaquinho.Certa vez, deitado no chão e olhando para o alto e a imaginar o morro todo em verde e rosa, descobri que a natureza já tinha feito a sua parte. As mangueiras, muitas mangueiras, coloriam a paisagem com todo o verde possível e necessário. Nesse dia entendi a razão/ inspiração do verso Mangueira, teu cenário é uma beleza/ que a natureza criou… Só faltava o rosa, pensei. (1)Foi há muito tempo que ouvi falar pela primeira vez das grandes mulheres de Mangueira. Vovó Lucíola, parteira que ajudou muitos mangueirenses a chegar ao mundo, dona de uma sabedoria de preta velha, e que muitos diziam ser mais antiga que o próprio morro, me contou, com riqueza de detalhes, lindas histórias de doçura e de bravura, que me encantaram a alma e invadiram a minha imaginação. Ainda lembro quando vovó me pegou pelo braço e apontou uma frondosa mangueira no alto do morro e falou: “tá vendo aquela árvore, “fio”?” Enxuguei as lágrimas que insistiam em molhar meu rosto e firmei o olhar na direção apontada. E, continuou vovó: “ela é como um elo entre as mulheres do morro e a nossa Escola de Samba. A raiz, o tronco resistente e os galhos cheios de folhas, servem para proteger as flores que se transformarão em frutos. Assim, também, são as mulheres, daqui e de qualquer lugar, “fio”! Nós somos como as árvores, como a natureza, geramos vida e continuidade através dos nossos frutos. Assim é a nossa vivência e nossa contribuição com a Mangueira!”. Neste dia entendi que o que estava faltando era o rosa feminino daquelas mulheres para fazer par com o verde das mangueiras… Eram as “ROSAS” de Mangueira que estavam faltando! Tudo agora fazia sentido! Os homens foram a raiz e o tronco, mas as mulheres foram as flores, as “ROSAS” que geraram os frutos mais doces que a Mangueira me deu! Algum tempo depois, novamente deitado no chão e olhando as mangueiras, agora enfeitadas de flores, lembrei-me da minha conversa com vovó Lucíola. Lentamente adormeci e sonhei. Sonhei com as grandes mulheres de Mangueira recebendo outras grandes mulheres do Brasil para um magistral desfile de carnaval. Sonhei que era primavera no morro e as “ROSAS”, em verso e prosa, novamente, desabrocharam com todo o seu esplendor. Venham divinas damas que carregam no sangue esta nobreza ancestral, despertem para sonhar novamente e ouçam os versos mais belos que o poeta compôs para lhes ofertar. Por mais esta noite, desçam o morro em cortejo para reinar na folia como legítimas representantes da dinastia do samba, pois é através de suas memórias que a Mangueira vem contar e cantar a trajetória de outras grandes mulheres do Brasil. Venha vovó Lucíola, e seja novamente a minha guia! Deixe o doce perfume de suas lembranças invadir o meu sonho, entorpecer a minha alma e se espalhar por ruas, becos e vielas. Na liberdade que somente a poesia e os sonhos podem conceder, vejo os barracos/castelos enfeitados com guirlandas florais e o povo vestido com fidalguia para a noite triunfal. E as baianas giram e o movimento de suas saias me faz recordar as histórias de valentia e superação que havia escutado muito tempo atrás. Então, presencio Tia Fé, anciã que carrega no próprio nome a força da religiosidade das mulheres do morro, sendo aclamada como uma verdadeira quebradeira de grilhões na aurora da Estação Primeira, e glorifico as mães do samba. Salve as “Candaces do Brasil”! Salve Suluca da Mangueira, tal como Chica da Silva, uma autêntica herdeira da realeza africana! Orayê yê o, Ciata de Oxum; a sua benção Mãe Menininha do Gantois! Os acordes afinados de um violão me chamam a atenção e uma suave melodia embala o meu sonho. Não demora e o coro, ao longe, também se faz ouvir e o canto harmonioso das pastorinhas de Mangueira atravessa a barreira do tempo, unindo passado e presente e, num compasso emocionante, faz-se ecoar pelas vozes das grandes cantoras mangueirenses, que hoje cantam em homenagem às grandes intérpretes do Brasil. E tem Chica, Chica Boom e balangandãs para todo o lado e disputas acirradas entre as Rainhas do rádio. Mas, sempre haverá uma “bandeira branca” para “clarear” a alegria! O morro é festeiro e transpira musicalidade. E tem jongo e maxixe nos cordões de velhos, mas a batucada é soberana para embalar a cantoria e animar o povão quando chega o carnaval. Protegida pela Guarda Real da bateria, a rainha desce as escadarias do seu castelo, no alto do morro, e se posta à frente dos ritmistas com altivez monárquica para receber as rainhas da beleza brasileira, lideradas por Gisele Bündchen e Marta Rocha coroada, com a faixa no peito e o cetro na mão. Trajes típicos desfilam a nossa brasilidade e se misturam às mulatas e cabrochas em apresentação apoteótica. No meu sonho “Real”, o Buraco Quente se transforma em passarela de moda e de samba; porque, no reinado de Momo, todas as mulheres são belas rainhas e nós, os seus súditos. E, tudo em Mangueira é belo e tem seus fundamentos! Feito um ritual mágico, tia Lina se posiciona para ser reverenciada como a primeira Porta-Bandeira da verde e rosa. Percebo os guardiões abrindo caminho enquanto o pavilhão mangueirense flutua em meio ao povo, conduzido com graça e elegância, ora por Neide, ora por Mocinha. É a arte em movimento antropofágico de Tarsila! É a delicadeza das mãos nos versos de Raquel de Queiroz; é a sensibilidade feminina transmitida em cores e gestos; é o poder da arte derrubando barreiras e preconceitos e empunhando a bandeira da igualdade. As vozes se multiplicam e a cantoria aumenta. Mas é preciso concentração! Uma voz se destaca entre todas as outras e se faz respeitar! Em Mangueira, berço de grandes guerreiras, Dona Neuma, mulher de fibra, prestígio e liderança, é quem toma as rédeas da situação, seja nas árduas batalhas da vida, no dia a dia do morro ou nas alegres batalhas de confetes e serpentina. Sempre com a firmeza e a sensibilidade de uma líder nata. Quando necessário, fazia-se Maria Quitéria nas pelejas para defender o samba e a Mangueira, mas se alguém precisasse de auxílio, rapidamente se transformava em Ana Néri para socorrer. Então, respeitem quem pode chegar aonde elas chegaram e abram alas para todas as mulheres que se colocaram à frente de seus tempos e que, nunca estiveram à espera de príncipes encantados para lhes salvar! São estas mulheres que nos conquistam pela simplicidade e, ao mesmo tempo, se impõem pela grandiosidade, e que hoje, personificadas em Dona Zica e aclamadas em um desfile triunfal, recebem de Mangueira o que a história oficial muitas vezes lhes negou: a valorização e o reconhecimento. Que seus exemplos de força e persistência se transformem em uma espécie de vento suave e contínuo capaz de tremular no ponto mais alto das nossas consciências a legítima bandeira verde e rosa… Que o rosa possa significar a mais singela tradução do nosso reconhecimento a todas as mulheres deste país… E que o verde possa transmitir a nossa esperança por igualdade de direitos, para a honra e glória daquelas que lutaram e ainda lutam por dignidade. Ainda inebriado, sinto o rosa da alvorada no morro a me despertar. Percebo que o meu sonho está chegando ao fim, não no sentido de acabar, mas porque está se tornando realidade! A sua benção vovó Lucíola e, obrigado por me permitir sonhar, por esta noite, o seu sonho maior de igualdade e respeito a todas as mulheres. É a sua, a nossa Mangueira que está na Avenida e, todas as Marias com as latas d’água nas cabeças, as negas mais malucas do que nunca, as cabrochas e mulatas e as senhoras do Departamento Feminino e da Velha-Guarda, vêm saudar as nossas Ritas Lee, as nossas Martas Vieira da Silva, as nossas Marias da Penha e as nossas Fernandas Montenegro porque, para honra e glória do Brasil, “Agora Chegou a Vez, Vou Cantar: Mulher de Mangueira, Mulher Brasileira Em Primeiro Lugar!” (Cid Carvalho) (1) Trecho retirado da revista: Mangueira, Paixão em Verde e Rosa de 2005. Texto do então Presidente da Agremiação Álvaro Luiz Caetano e livremente adaptado por Cid Carvalho. |