Nunca mais

Texto e foto de Valéria del Cueto

Daquela altura tinha uma visão geral do ambiente em que estava. Amplo e cheio de coisas. Em primeiro plano via as costas da cadeira ergonômica (sinal de que quem a ocupava o fazia com frequência) antes da escrivaninha repleta de papéis, pastas e objetos. Entre eles um laptop que visualizava pelo alto do espaldar giratório. Mais à frente cadeiras para visitantes e um sofá voltado à parede formando outro ambiente. Ao fundo estantes, mais livros e a enorme tela da TV que abriu sua visão para o mundo lá fora. Um janelão à direita. Para trás não via nada, espremido entre outros exemplares de literatura.

Não sabia seu nome, posto que era incapaz de se olhar. Não era gordo, achava, como via outros nas estantes que decoravam as paredes frontais. Mas, pela posição que ocupava, deduziu ter algum valor. Estava ao alcance das mãos do “patrão”. Era constantemente manuseado. À vista quase inevitável dos visitantes curiosos que por ali passavam. E eram muitos.

Devia conter, imaginava, alguma erudição. E essa era ampliada pelo que apreendia em seu subconsciente literário pela tela em frente. Era testemunha involuntária da história que se desdobrava a cada dia no recinto por meio daquela imensa, diversificada e louca janela pra o mundo.

De tudo que viu preferiu a alegria. O momento mais esperado era o carnaval. Seu interesse começou quando numa madrugada se (ou)viu no ritmo de uma batucada e, nas imagens projetadas, apareceu a imensa alegoria de… um livro aberto! Um irmão gigante incrustado num carro repleto de foliões. Para descobrir o que fazia ali, no meio da festa, prestou atenção às cenas que quase saiam dançando enquanto reverberavam pelo ambiente, quebrando a severidade da vizinhança na biblioteca.

Então um livro podia alcançar o mundo! Passou a observar todos as escolas de samba ávido por novas expressões literárias nos desfiles. Se sentia representado e valorizado. E lá estavam eles, em vários enredos apresentados. O período carnavalesco era ansiosamente aguardado nos anos em que pontificou com whisky e salgadinhos no salão aconchegante.

Um dia, a surpresa. Uma mudança imprevista! Não o entra e sai da estante para uma consulta ou a espanada semanal. Da prateleira para a escuridão de uma caixa fechada e, pelo som, lacrada! Que destino o aguardava? Perdeu a noção do tempo.

Sua visão foi ofuscada quando pode respirar ar puro novamente. A rearrumação foi numa estante de metal, com mais folga entre os irmãos. A visão do entorno completamente diferente. Livro empilhados, mesas, muito movimento. Ouviu dizer que fazia parte de um acervo doado a uma biblioteca de comunidade. Mais uma vez ganhou lugar de destaque. Sinal de sua relevância. Afinal, descobrira. Era um exemplar da Constituição Federal! Passou a viver manuseado e consultado.

As notícias do mundo exterior não mais chegavam. Pegava umas rebarbas por cima dos ombros dos celulares dos frequentadores. O que não era muito em se tratando de uma biblioteca. Passou a entender mais de games do que acompanhar as novidades. E sentia falta… dos carnavais. Ausentes pelo fechamento do espaço bibliográfico popular nos dias de folia.

Com o passar do tempo foi se desgastando naturalmente. Sentiu as juntas ressecadas, as folhas se soltando. Pressentiu que seu fim estava próximo pedindo a Deus só mais um carnaval, nem que fosse no compacto da quarta feira de cinzas, dia da apuração.

Não teve forças nem estrutura para chegar sequer ao meio do ano. Se despedaçou. Foi literalmente desfolhado e, com as capas e lombada, jogados numa caixa. Fechou os olhos. Imaginava que para sempre quando o conteúdo da caixa foi sendo encharcado folha por folha com um líquido pegajoso. Se entregou. Desfaleceu.

Recuperou a consciência ouvindo o som da bateria e o rugido da arquibancada aclamando a verde e rosa. “Como assim”, pensou, “onde estou, o que sou?” A lucidez foi voltando devagar. Envolvida na alegria reverberando ao vivo e a cores! Ainda havia vida em suas páginas. Usadas que foram para empastelar uma escultura carnavalesca. Fazia parte de uma alegoria num dos carros da Mangueira!

Cruzando por um dos telões que transmitiam o desfile da Sapucaí de rabo de olho (meio grudado) pode se situar. Seu desejo inimaginável fora realizado. Era um livro que virara o livro. Papel picado reelaborado para compor outra obra. Também literária. E, dessa vez, visual.

Na passada de olhar pelo telão conseguiu ler seus dizeres em letras gigantes: “Ditadura Assassin”. Franziu a sobrancelha (e livro tem?) Nunca mais. Fizera sua parte. Ajudara a impedi-la. Merecia a recompensa, decidiu, se deixando sacolejar até chegar a Apoteose ao ritmo da “Tem que respeitar meu tamborim”, a bateria da Mangueira.

*Valéria del Cueto é jornalista e fotógrafa. Da série “É carnaval” do SEM FIM… delcueto.wordpress.com



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