O bloco dos insensatos
Texto, foto de Valéria del Cueto
Ah, cronista enclausurada. Se humano fosse diria que estou com… saudades. Ausente por tantas luas sinto falta da nossa correspondência unilateral já que cabe a mim, Pluct Plact, o extraterrestre, manter esse monólogo noticioso com você que escolheu se isolar voluntariamente nessa cela do outro lado do túnel.
Pra falar a verdade andei suave na nave do abandono da amiga pois tinha certeza que solita você não esteve. Afinal, os últimos meses foram aqueles que mantém o fio terra que a liga (ainda) a esse mundo fantástico, o do carnaval. Acho que senti sua energia oculta enquanto, do alto do Arco da Apoteose, na dispersão, apreciava o desfile das escolas de samba na Marquês de Sapucaí.
Essa foi, inclusive, uma das razões que evitei usar nosso canal de comunicação, o raio da luz da lua que entra pela janela e banha sua cela de reclusa. Vai que alguém sentisse o movimento, resolvesse dar uma espiada e, descobrindo sua ausência, desse o alarme do desaparecimento da amiga? Resolvi não arriscar e acho que fiz bem.
Estou tão quase humano que, como eles já tenho desculpas pra tudo, mesmo que impossíveis. Andei aperfeiçoando essa característica que, pessoalmente (olha eu “pessoa”) não considero uma qualidade, acompanhando os últimos acontecimentos aqui da Terra onde, pra variar, pululam as guerras. Outro bom argumento para deixa-la livre, leve e solta nos preparativos e durante a folia. Sabe lá como será o próximo carnaval?
Se me preocupei com alguma coisa foi com sua condição física precária para aguentar as idas e vindas na extensão da avenida. Fiscalizei a retirada de vários componentes estendidos nas macas pilotadas pelos heroicos maqueiros encarregados de percorrerem a pista escoltando e carregando quem não resistia a travessia e desabava no asfalto nos dias de desfile.
Cronista, que coisa incrível a reação dos acudidos. Sofriam por males físicos, é verdade. Também pela impotência de seus corpos que não aguentavam a sobrecarga do esforço de carregarem fantasias tão elaboradas, mas… na maioria, em suas áureas, havia sempre uma cor da alegria, do prazer a todo custo. Sei que você não vai perguntar “Como assim?” porque sabe do que estou falando. Sim, eles tentaram. Podem não ter conseguido chegar aos pés da Apoteose para comemorarem seus 40 anos de existência, mas fizeram por merecer o sonho parcialmente realizado.
Como você, estar ali era mais importante que o espaço exíguo em que habita e, portanto, limita uma preparação física adequada. Como você, eles, todos eles, perdem a noção do perigo quando o ritmo do coração se mimetiza com a batida dos surdos. Como você, incorporam uma força maior que tem origem incerta e não sabida, capaz de leva-los ao extremo. Do amor, da entrega e da felicidade que se renova a cada carnaval.
Carnaval? Falei em carnaval? Jurei que esse não seria o assunto em pauta. Como a maioria das atitudes humanas que adotei desde minha chegada a esse pouso involuntário por não poder ultrapassar com minha nave essa camada poluente. A que irá, em breve, sufocar o planeta e seus habitantes, sejam eles minerais, vegetais ou humanos. Isso não é uma previsão, é uma certeza. Pedra cantada, você diria, no bingo da evolução universal.
Trazendo o assunto para seu modus vivendi (latim, querida, língua quase morta mais viva do que nunca por dela tantas serem oriundas), exemplifico com a antigamente gélida temperatura da água do mar que tanto atrapalhava a permanência no seu tempo de pegar jacarés no Leme e no Arpoador. Foram as águas oceânicas mais quentes já registradas. Aliás, o planeta está batendo recordes de calor mês após mês.
Ruim para os humanos que inertes não parecem se dar conta do tamanho do problema. Bom para os mosquitos que proliferam a rodo.
É como se o “país tropical” fosse mais que letra de música. Se agarram ao verso seguinte, o “abençoado por Deus”, sem entender quer a natureza não está nem um pouco satisfeita com o conjunto da obra e vai responder à altura. Não há mais tempo para ação. Como na Sapucaí, as saídas laterais de emergência estão obstruídas. Só há passagem no início ou no final da pista. É rezar para o pior não acontecer agora. Só depois que o bloco dos insensatos passar.
*Valéria del Cueto é jornalista e fotógrafa. Crônica das séries “Fábulas Fabulosas” e “É carnaval” do SEM FIM… delcueto.wordpress.com