Deu bolero no samba
Encontro do Samba lota a orla carioca no primeiro sábado do ano
Texto e fotos de Valéria del Cueto
Graças a Deus o tempo estava nublado! O que não evitou que o mormaço da tarde de verão, na espera pelo horário do início do desfile do “Encontro do Samba” na pista da orla da Avenida Atlântica, Copacabana, deixasse os rostos das passistas e porta-bandeiras das 13 escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro salpicados de gotas de suor, antes seguirem em direção ao palco montado para o réveillon carioca, em frente ao Copacabana Palace.
O evento inédito foi promovido pela Prefeitura, por meio da Riotur, no sábado, 6 de janeiro, e faz parte do calendário “Rio de Janeiro a Janeiro”. Reuniu ritmistas das agremiações, parte saindo da Avenida Princesa Isabel e o restante da Figueiredo de Magalhães, para uma apresentação com a Orquestra Petrobrás Sinfônica que já vem popularizando seu trabalho de renovação de público e acesso à música erudita, sob a regência do Maestro Isaac Karabtchesky. Também participaram da festa os sambistas Martinho da Vila, Alcione, Diogo Nogueira e Iza, a cantora pop.
O cortejo
Montadas as “alas” de baterias, cada escola teve direito a cinco minutos de “esquenta” mostrando de forma livre o suingue das agremiações e das passistas selecionadas, encabeçadas pelas bandeiras e seus respectivos guardiões.
O público, separado da pista por grades, se acotovelou para acompanhar o percurso embalado por sambas antigos. Ironicamente, a seleção musical começou pelo emblemático samba de Beto Sem Braço e Aluísio Machado BUM BUM, PRATICUMBUM, PRUGURUNDUM, da escola campeã em 1982, Império Serrano. Diz a famosa composição: “Super Escola de Samba S/A, super alegorias, escondendo gente bamba, que covardia!”
Para um espetáculo transmitido para TV, no caso pelo Multishow, está comprovado que 40 minutos de desfile, sem o restante do corpo das escolas de samba, está de bom tamanho. Depois, foi subir para o palco e se posicionar. Antes que a frágil grade que separava o público fosse rompida ou que os mais entusiasmados, avançando pela pista atrás das escolas campeãs (esse ano foram duas, Portela e Mocidade) que fechavam o cortejo, conseguissem ultrapassar a barreira da segurança.
Você ouviu algum samba enredo recente, dos últimos anos? Claro que não, porque o repertório se limitou a standards e clássicos. Foi asséptico. Como todo o espetáculo, diga-se de passagem.
No palco
Sob o impacto de “Also Sprach Zarathustra”, de Richard Strauss, popularizada na abertura do filme “2001, uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, o Maestro Isaac Karabtchevsky abriu espetáculo no palco central, em formato de pandeiro, acoplado a uma super alegoria visual concebida por Abel Gomes. A curadoria musical foi de Guto Graça Mello e a direção coreográfica dos casais que conduziam os pavilhões ficou a cargo de Carlinhos de Jesus.
Alcione, Martinho da Vila, Diogo Nogueira e Iza se revezaram interpretando antigos clássicos como “Aquarela do Brasil”, “Não deixa o Samba Morrer” e medleys de Cartola, Ataulpho Alves e Dona Ivone Lara. A composição mais recente do repertório foi “Deixa a Vida Me Levar”, de Sergio Meriti e Eri do Cais. Popularizada por Zeca Pagodinho, ela embalou a seleção brasileira de futebol no penta de 2002.
Bolero no samba
A parte mais original do espetáculo foi a apresentação do “Bolero”, de Ravel, pela orquestra Petrobrás Sinfônica e as baterias posicionadas no entorno do palco principal. Lucinha Nobre e Marlon Lamar, improvisaram uma performance “adornando” a música com passos e piruetas típicos da dança dos casais de mestre-sala e porta-bandeira.
Em seu perfil no facebook, a dançarina com formação clássica, conta que estava brincando durante o ensaio, reproduzindo gestos que ela lembrava da coreografia de Maurice Bejárt. Carlinhos de Jesus perguntou se ela toparia fazer os movimentos na apresentação. Mais tarde, Lucinha enviou para o parceiro um vídeo com a performance antológica dos bailarinos Jorge Don e Maya Plisetskaya. Nela, o casal portelense se inspirou para arrebatar o público.
Em tempo: a porta-bandeira dedicou o momento tão especial aos bailarinos do Teatro Municipal que enfrentam tempo difíceis, assim como todo o funcionalismo do estado do Rio.
As reações
Pelo caminho, conversando com os espectadores colados nas grades, dava para sentir que o programa agradou, mas não substituiu os finais de semana que antecedem o carnaval na Sapucaí. “Serviu como aperitivo, mas é pra gringo ver”, analisou uma entusiasmada torcedora da Mocidade Independente, fazendo sua crítica para a amiga de toda a vida, turista de Belém do Pará que acabara de conhecer e soube por acaso do programa inédito: “Imagina ver a escola inteira e ainda mais cantando o samba desse ano”, sonhava. “Está dando pro gasto, mas não satisfaz”, finalizou.
A resposta foi complementada por um vendedor ambulante que fez questão de dar seu pitaco: “Não foi dessa vez que o prefeito Crivella fez as pazes com o povo do samba. Está todo mundo insatisfeito”.
A maior voz dessa insatisfação veio de Neguinho da Beija-Flor que se recusou a participar do evento e fez questão de se posicionar: “Na hora de fazer festa na Avenida Atlântica, esse “Encontro do Samba”, eles lembram das escolas. Mas pro desfile cortaram a verba pela metade, atrasaram os preparativos do espetáculo, deixaram centenas de profissionais sem trabalho, porque as escolas foram pegas de surpresa com o corte e tiveram que reduzir o pessoal. E as escolas da Série A e as que desfilam na Intendente Magalhães, que não receberam nada até agora? Por essas e por outras, é que tô fora”
Se é para gringo ver, eles devem ter gostado muito. Mas, para a maioria carioca dos 400 mil espectadores que lotou a orla de Copacabana, o espetáculo deixou um gosto de queremos mais. Ou melhor: queremos os ensaios técnicos da Sapucaí de volta…
*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “É Carnaval”, do SEM FIM