Dilúvio em terra de bamba? E a gente samba…
Texto e foto de Valéria del Cueto
Quase um mês sem chover no Rio de Janeiro e a previsão para a noite do domingo, 20 de março de 2022, era de temporais. E assim foi na data marcada para os ensaios técnicos no Sambódromo das escolas de samba do Grupo Especial Paraíso do Tuiuti, Vila Isabel e Mangueira, no carnaval extemporâneo da pandemia, na Marquês de Sapucaí. Melhor o atraso aquático do que a ausência…
Depois de não poder participar do primeiro final de semana de ensaios técnicos por força de um compromisso assumido, esperei ansiosa pelo seguinte. Era o reencontro com os amigos e o início da preparação, quem sabe, de um novo roteiro para fotografar os desfiles marcados para depois da Semana Santa, em abril. Lembra que em 2020 os ensaios técnicos não aconteceram? Só a lavagem da Sapucaí, o teste de luz e som com a campeã do ano anterior, no caso, a Mangueira, na véspera do carnaval. A cara do Crivella e do atraso nas obras da pista, pra variar…
Antes do início das apresentações a chuva já lambia a pista dançando nas rajadas da ventania.
Já entrei no espaço do Sambódromo vestindo a capa e, para checar as condições, rumei em direção a torre de transmissão. Não precisei chegar até lá para imaginar o que veria. O vento empurrava as chuvas para o lado e não havia um único espaço seco na estrutura. Fiquei por ali ilhada embaixo das arquibancadas do setor 11, rodeando e conversando com o pessoal dos serviços gerais, sabendo da vida deles. Todos ligados ao mundo do samba, cadastrados e chamados para fazer a limpeza. Por perto guardas civis reunidos num grupo conversavam sobre… passagens da Bíblia!
Assisti o ensaio do Paraíso Tuiuti da torre mesmo e mal instalada, tendo que secar a lente manchada pelos respingos de tempo em tempo. Desci devagar a pista no intervalo e fui em direção a concentração. Não vi quase nada da Vila Isabel, como você (não) verá nos álbuns.
Fui direto à área da montagem do grid da bateria da Mangueira na Presidente Vargas, do lado dos Correios. Como o corpo da escola montou do lado oposto, na direção do lendário Balança Mas Não Cai, não consegui ver os componentes passando, nem visitar a concentração para reencontrar os queridos amigos da comunidade verde e rosa. Só mais tarde, na pista…
Cheguei a tirar a capa de chuva, mas logo que foi dada a ordem de montagem da bateria, depois da reunião do Mestre Wesley e sua diretoria com os ritmistas, achei melhor vesti-la de novo. Não que fosse adiantar muito diante da água que despencou do céu no ensaio.
Saí no meio dos cuiqueiros gravando o desenho da bateria na passagem pelas arquibancadas do Setor 1 bem vazio, já que chovia pesado. Me desencantei quando, depois de seguir até o Setor 3 e retornar para o primeiro recuo com os ritmistas, descobri que a câmera não havia gravado! Das duas uma. Ou desanimava e desconcentrava ou dava o troco nas fotos.
Claro que optei pela segunda hipótese. Foi aí que descobri vasculhando a mochila e fazendo malabarismo enredada nas alças e mangas encharcadas que não estava mais com a “capa de chuva” do equipamento. Dei pela ausência do acessório essencial no primeiro módulo de julgamento e vi como fazia falta porque, por cima de mim, a manga de uma mão com um celular que gravava as apresentações da comissão de frente, pingava insistentemente em cima da Nikon! “Ai meu santo dos circuitos integrados, protegei o equipamento”, rezava no meio da cantoria…
Olhei em volta e a única coisa que achei foi uma bandeirinha da Vila Isabel, que havia acabado de desfilar. Expliquei a situação à senhora que estava na frisa e ela pediu para a neta ceder o plástico. Imaginei na hora se não estava desestimulando a menina, para quem a bandeirinha poderia significar uma lembrança da noite inesquecível.
Agradeci e improvisei um nozinho na parte de baixo da lente. Era o que tinha para o momento. Corri para o segundo módulo de julgadores serpenteando pelo meio das baianas e algumas alas embaixo do temporal. Registrei novamente imagens da comissão de frente e esperei pelo casal de mestre-sala e porta-bandeira, Matheus Olivério e Squel Jorgea.
Nessa altura já não tinha mais panos secos para enxugar o equipamento. Uma toalha pequena e um lenço estavam ensopados. Torcíveis, como a roupa do corpo. O tênis fazia choc choc nas poças da beira da pista. Impossível escoar tanta água, mesmo com o novo sistema recém inaugurado. Nas costas, a mochila por baixo da capa ainda resistia, mas o suor também a deixava úmida por dentro. O mesmo nos braços. Sentia a água escorrendo pelas costas, o capuz jogado para trás, inoperante.
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A única preocupação era com a câmera. Lembrei da camiseta que havia trocado pela camisa antiga da bateria da Mangueira, para facilitar o reconhecimento pela harmonia da escola. Foi a salvação. Usei para ir enxugando a lente dos pingos e a câmera, protegida pelo corpo e a capa das rajadas de chuva.
Fiz os registros de Débora de Almeida e Renan Oliveira, o segundo casal, já na terceira cabine de julgadores, embaixo da torre de transmissão e por ali esperei a chegada da bateria comandada por mestre Wesley e a rainha Evelyn Bastos.
Usei a última parte da pista para fazer mais registros do mestre, da rainha e, claro, dos ritmistas que sambavam na dispersão, em frente a Apoteose de Oscar Niemeyer.
O arco se projetava sobre o povo do samba em sua manifestação carnavalesca mais genuína, num ritual mítico de lavagem e purificação das dores que cercaram a vida de todos nós nos últimos dois anos…
PS: As fotos saíram e, tanto a câmera quanto eu, nos recuperamos. Ela mergulhada no arroz para secar e eu num banho bem quente pra reequilibrar.
Evoé que tem carnaval pela frente…
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