Saudade, fonte que nunca seca…

Texto e fotos de Valéria del Cueto

Cada um com seu cada qual. Mas, como dizia Mestre Marçal, “tudo junto e misturado”. E foi comendo pelas beiradas enquanto o mingau esfriava que o Rio ganhou dois representantes legítimos do samba e da carioquice.

Para falar de Monarco, da Portela, e Nelson Sargento, da Mangueira, é preciso saber o significado da expressão “beber na fonte”. Se enredar nos fios de afetos e resistência que, entremeados, teceram histórias, rebordaram sonhos e criaram fantasias interligadas por uma de nossas maiores expressões populares musicais, o samba.  

É preciso ser atraído pela energia irresistível do saber carnavalesco como ponto de convergência e vivência comunitária. Entender o significado dos fundamentos de uma escola. De samba. Sentir no peito e deixar seu corpo ser dominado pelo pulsar de uma batucada.

E se, num desses momentos inebriantes, você cantarolar versos como “Samba, agoniza, mas não morre, alguém sempre te socorre…”, ou “…Agora, uma enorme paixão me devora, a alegria partiu, foi embora. Não sei ficar, sem teu amor…”, esteja seguro que você está apreendendo e repassando costumes e lições de dois griôs.

Eles, os guardiões de saberes ancestrais. Passados e ressignificados entre as gerações que circulam pelas ruas dos subúrbios, vielas e becos das favelas da cidade. As que se encontram e se interligam fortalecendo esse tramado único que podemos chamar de identidade do carioca.

Oriundos de diferentes lugares da cidade, se estabeleceram e conviveram com personalidades exponenciais de suas comunidades, pelas quais sempre declararam paixão incondicional e, sim, beberam na fonte!

Ao fazê-lo, por meio de seus talentos inerentes e desde cedo reconhecidos, se tornaram protagonistas da incrível epopeia suburbana do Rio de Janeiro. As cores de um, o azul e o branco, as do outro, o verde e rosa.

Se não são crias, foram criados nos terreiros de chão batido que mais tarde, depois de cimentados, passariam a ser as quadras de suas agremiações. Nelas, testemunharam o florescimento das comunidades que abraçaram com tanto amor.

Hildemar Diniz, em Oswaldo Cruz, depois de ganhar o apelido de Monarco ainda criança, de passagem por Nova Iguaçu, nasceu em Cavalcante. Nelson Mattos, que do exército levou a alcunha Sargento, na Mangueira, vindo do morro do Salgueiro, nasceu na Praça XV.

Mais distante do centro da cidade, Monarco conviveu com Paulo da Portela, Alcides, Manacéia e Chico Santana. Nelson Sargento, ao lado da Quinta da Boa Vista, na primeira estação do trem, com Alfredo Português, Cartola, Carlos Cachaça e Geraldo Pereira.

Um elo em comum entre os dois bambas é Paulinho da Viola. Foi produtor, em 1970, de “Portela passado de Glória” o primeiro disco da Velha Guarda portelense, já presidida por Monarco. Dele, disse o mangueirense Nelson Sargento: “Dois ídolos. Cartola e Paulinho da Viola, o resto são meus amigos”.

“Quitandeiro, leva cheiro e tomate
Pra casa do Chocolate que hoje vai ter macarrão…”

Monarco e Paulo da Portela

“Oh! primavera adorada, inspiradora de amores.

Oh! Primavera idolatrada, sublime estação das cores...”

Nelson Sargento, Alfredo Português e Jamelão. Samba enredo da Mangueira em 55.

Os dois tiveram o privilégio de compor com seus mentores, mas apenas Sargento venceu samba-enredo em sua escola, a Mangueira, apesar de Monarco ter participado de disputas na Portela, a última em 2007, com seu filho Mauro Diniz e outros parceiros.

Em compensação a cada esquenta, antes da pista da Sapucaí virar o rio que passa por nossa vida, o samba que compôs ainda garoto, “Retumbante Vitória” (depois rebatizado como “O passado da Portela”), leva às lágrimas e acelera o coração pulsante de quem desfila ou assiste a passagem da escola.

Nem sempre conseguiram viver da excelência da arte que praticavam. Monarco guardou carros, foi feirante e contínuo. Nelson Sargento, pintor de paredes. Cacá Diegues, o cineasta, dizia que ele fez em sua casa “a pintura mais longa da história da arquitetura”. Já reconhecido mostrou sua versatilidade artística na literatura e nas artes plásticas, além de ser um ator premiado.

Ligados às suas raizes foram membros e, depois, presidentes de lendárias Velhas Guardas, grupos musicais compostos por pastoras, cantores e compositores das escolas de samba.

Também receberam o reconhecimento que lhes era devido ao serem escolhidos Presidentes de Honra de suas agremiações. Por relevância e merecimento reverenciados nos encontros do povo do samba.

Juntos participaram do espetáculo “Apoteose do samba: 90 anos do Sargento – com Monarco e Nelson Sargento”, escrito e apresentado por Ricardo Cravo Albin. Na ocasião, Nelson disse que passou a se considerar “imortal do samba”. Ele já sabia…

Os ícones da Portela e da Mangueira partiram nesses tempos difíceis.

Para não ficar no vácuo das saudades o jeito é virar o jogo imaginando com quem estão agora (certamente em bom lugar). Na companhia de outros bambas que já por lá se reuniam para pagodes celestiais!

Por eles foram recepcionados, junto a outros sambistas que perderam a vida nesse período da pandemia. Tantos que é melhor nem tentar nomeá-los sob o risco de cometer a injustiça de algum esquecimento.

Sim, merecidamente, como alguns dos outros que partiram, receberam flores em vida (como pedia Nelson Cavaquinho), reconhecidos e reverenciados por serem exemplos às novas gerações que, assim como eles, continuarão bebendo na fonte. Aquela, sobre a qual Candeia já versava…

“O sambista não precisa ser membro da academia

É natural da sua poesia

O povo lhe faz imortal”

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Valeria del Cueto é jornalista, fotógrafa e, uns 500 textos depois, acha que um dia ainda será lembrada como cronista. Do carnaval e da vida. Para isso conta com a sorte! Como a de ter o privilégio de receber a honrosa missão de bordar palavras sobre ídolos que fizeram parte da história do Samba. Da série “É carnaval“.

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